Os servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) divulgaram, nesta terça-feira (28/1), uma carta aberta à sociedade na qual se posicionam contra as mudanças na política indigenista anunciadas pelo presidente da República Jair Bolsonaro (PSL).
Os membros do órgão se opõem ao deslocamento da Funai da área do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Também se posicionam contra a retirada de suas atribuições em questões relativas à demarcação de terras indígenas e ao licenciamento ambiental que afetem populações e terras indígenas.
Os servidores alertam para o fato de o governo ter mudado de forma tão radical o sentido da política indígena que era praticada desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 sem que houvesse qualquer diálogo com a sociedade, com os povos indígenas e com os indigenistas.
Eles alertam para a necessidade de uma política regulatória do meio ambiente, colocada à prova em fatos como o recente rompimento da barragem de rejeitos da Vale, em Minas Gerais: “A tragédia testemunhada nesse momento em Brumadinho, reeditando a tragédia de Mariana, são uma amostra da importância dos procedimentos e marcos regulatórios no que diz respeito ao meio ambiente e reforçam a necessidade de fortalecermos as instituições públicas de controle e fiscalização de obras”, dizem.
Leia a carta aberta:
“Funai inteira e não pela metade
Nós, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai), reunidos em plenária no dia 29 de janeiro de 2019, vimos a público expor nosso posicionamento sobre as mudanças na política indigenista realizadas por meio da Medida Provisória (MP) nº 870, de 1º de janeiro de 2019, bem como Decretos relativos a estruturas de Ministérios e vinculação de entidades da administração indireta, conforme tem sido anunciado neste início de nova gestão no governo federal.
A MP 870, os Decretos já publicados e as declarações dos novos gestores propõem alterações drásticas na política indigenista, mudando profundamente seu sentido. Pretende o governo cortar a Funai ao meio: deslocá-la para o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e dela retirar as atribuições referentes à demarcação de terras indígenas e ao licenciamento ambiental, transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Anuncia-se também que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), agora vinculado ao Mapa, absorverá parte dessas atribuições, além de servidores de setores inteiros, acervo documental, bens patrimoniais e orçamento oriundos da Funai.
Entendemos que – e explicamos o porquê – a Funai, enquanto entidade da administração pública federal indireta, deve permanecer vinculada ao Ministério da Justiça (MJ), mantendo todas as suas atuais atribuições, bem como servidores, acervo, patrimônio e orçamento. Nada justifica que se dê um esvaziamento de competências do órgão indigenista e que isto venha acompanhado da reconfiguração de sua vinculação ministerial, passando do MJ ao MMFDH.
Do ponto de vista da ordem constitucional brasileira e da racionalidade administrativa, não há amparo para que duas políticas fundamentais relacionadas às terras indígenas, a demarcação e o licenciamento, sejam retiradas da Fundação que tem por finalidade justamente proteger e promover, em nome da União, os direitos constitucionalmente assegurados dos povos indígenas. Transferir essas competências ao Mapa é orientar-se pela visão de que as terras públicas brasileiras devem submeter-se à exploração econômica privada, sobrepondo-se às políticas que atendem aos interesses públicos. É, sobretudo, óbvio ululante, colocar direitos sob a tutela daqueles que têm o interesse manifesto em não garanti-los.
O posicionamento aqui externado foi aprovado de forma unânime em Assembleia extraordinária da Indigenistas Associados-INA, associação de servidores da Funai, realizada em 23 de janeiro de 2019. Motivada pela conjuntura que se instalou após a publicação da MP 870, a Assembleia também deliberou que a INA recorrerá aos meios que estiverem ao seu alcance para que, no processo de avaliação da MP pelo Congresso, essas mudanças sejam suprimidas. A presente carta também foi aprovada em plenária de servidores da Funai, realizada em Brasília, com participação à distância de servidores de CRs, CTLs e FPEs, em 29 de janeiro de 2019.
Há mais de 300 povos indígenas formados por cidadãos brasileiros, os quais permanecem atualmente com o usufruto de apenas 13% do território nacional, protegendo-o. Esses povos são diversos e compreendem o mundo de formas específicas, em grande medida a partir de um caráter coletivo, ligado a um território tradicionalmente ocupado. Para eles, a terra e seu usufruto são indissociáveis: rituais, alimentação, plantio, espiritualidade, parentesco, tudo intrínseco. Por essa razão, o artigo 231 da Constituição Federal reconhece as formas de organização social, os costumes e tradições desses povos. Também por isso a Carta Magna garante o usufruto exclusivo do território, para que tais povos possam continuar a se reproduzir física e culturalmente, e para que o Estado brasileiro promova justiça aos nativos deste país, interrompendo o histórico violento e sangrento da colonização. E é esta a missão que jamais deverá ser retirada da Fundação Nacional do Índio: promover e proteger os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Defendemos uma Funai inteira e não pela metade, o que inclui a manutenção de seu vínculo com o MJ. Como detalhado nos tópicos abaixo, esse vínculo é constitutivo do exercício da política indigenista que se consolidou no país a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o qual também depende da atuação integrada entre diferentes setores da Funai, por meio da técnica do trabalho indigenista e de sua expertise única. Sem os setores responsáveis pela demarcação e pelo licenciamento, a Funai será enfraquecida e a execução da política indigenista perderá organicidade.
Carente de racionalidade técnica, a decisão de extirpar a Funai de uma supervisão ministerial adequada, de atribuições fundamentais, de setores inteiros e servidores só pode ser o resultado de uma equivocada vontade de traduzir em termos administrativos ameaças do recente período eleitoral: paralisar as demarcações; fazer as minorias se curvarem às maiorias; “dar uma foiçada no pescoço” do órgão indigenista. Contra esse equívoco, capaz de representar um erro histórico nos rumos da política indigenista nacional, com consequências sobre o modelo de desenvolvimento social e a imagem internacional do Brasil, são agora muitos os que felizmente se levantam. Estamos entre estes, com base no já dito e nos argumentos abaixo apresentados.
Consultor Jurídico