Ao declarar constitucional trecho da Reforma Administrativa de 1998 e permitir que o poder público contrate seguindo diferentes regimes jurídicos, inclusive a CLT, o STF reacendeu as discussões sobre o futuro da estabilidade no serviço público.
Na avaliação de estudiosos, integrantes do governo e sindicalistas, as carreiras ligadas ao atendimento direto à população, como é o caso de professores, assistentes sociais e profissionais de saúde, que representam a expressiva maioria do funcionalismo, tendem a ser as mais afetadas nos próximos anos.
Em relação aos servidores que desenvolvem “atividades exclusivas de Estado”, termo incorporado à Constituição em 1998, há consenso sobre a manutenção da estabilidade, embora o Congresso jamais tenha regulamentado as funções em que só o Estado atua.
De toda forma, a decisão do STF, que só vale daqui para frente, terá velocidade e desdobramentos distintos, a depender do contexto em que poderá ser aplicada.
Em estados e municípios, espera-se o aprofundamento de um movimento crescente em direção aos múltiplos regimes de contratação. Na União, servidores avaliam que se trata de uma bomba programada para estourar tão logo apareça um governo disposto a enfrentar esse debate.
“O emprego público já é protegido contra a demissão imotivada. Não vai ser uma mudança radical da noite para o dia. A realidade em muitos estados e municípios já não é o Regime Jurídico Único. No governo federal que é diferente. São realidades distintas”, explica a professora de Direito Administrativo Vera Monteiro, da FGV Direito SP e do Movimento Pessoas à Frente.
Segundo o Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, o Brasil tinha, em 2022, 7,4 milhões de servidores estatutários, contra 2,2 milhões de comissionados, 1,48 milhão de temporários e 483 mil celetistas.
Em relação aos estados e municípios, muitos deles não criaram leis como a 8.112 e já adotam regimes jurídicos distintos. Vera Monteiro pontua que são escolhas que oferecem alternativas para planejar adequadamente a força de trabalho, considerando a variável despesa.
O novo presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Estado de Administração (Consad), Samuel Nascimento, do Piauí, afirma que essa nova situação jurídica já deve ser incorporada aos planos de gestão de pessoas, mas diz que ainda é cedo para apontar quais serão as áreas mais impactadas pela decisão.
Já no caso da União, prevalece o regime jurídico previsto pela Lei 8.112, e o atual governo defende a estabilidade para o conjunto de servidores, exceção feita às atividades de apoio administrativo auxiliar e às atividades específicas de características temporárias.
Nesses casos, o Executivo vê espaço para modelos diferenciados, como “concursos específicos, ou via terceirização, sob guarida da CLT”, conforme destacaram, em artigo no JOTA, o secretário de Gestão de Pessoas do MGI, José Celso Cardoso Jr, e o ex-diretor de Carreiras e Desenvolvimento Douglas Andrade da Silva.
Em evento na segunda-feira, promovido pelo Movimento Pessoas à Frente e pela Folha de S.Paulo, a ministra Esther Dweck elencou três razões para manter a defesa da estabilidade para o conjunto do funcionalismo.
“Eu defendo a estabilidade por uma burocracia profissionalizada e estável; uma burocracia estável que permita a integridade de processos; e uma burocracia que não seja contratada por razões ideológicas. Isso não significa que a gente não deva atuar em outras frentes para que o servidor estável ofereça o seu melhor”, afirmou Dweck.
Dito isso, o que, então, pode mudar em relação aos servidores federais? A resposta depende da correlação de forças no Congresso e do vento político que vai soprar após 2026.
Como é sabido, tramita na Câmara a PEC 32, sem contar projetos de lei sobre o tema. Rechaçada pelo atual governo e pelo conjunto de servidores, a PEC é farta nas diferenciações das típicas de Estado (por exemplo, Receita Federal, Gestão, Diplomacia e Polícia Federal) com as demais carreiras.
Com a permissão para outras formas de contratações, além do Regime Jurídico Único (RJU), dirigentes de entidades de classe acreditam que está criado o ambiente propício para a diferenciação entre as carreiras e a fragilização da estabilidade.
“A granada do Paulo Guedes continua rondando. O pino ainda pode ser puxado. Por isso, vamos precisar de unidade entre os servidores para evitar uma luta entre carreiras, o que pode vir a acontecer nesse ambiente. Se o casco arrebentar, todo mundo afunda”, afirmou o secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal, Sergio Ronaldo.
Hoje, o Executivo deixa claro que não concordará com a quebra da estabilidade ou com a aprovação de uma PEC. E o favorito para a presidência da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), caso vença a disputa, tende a ficar alinhado com o governo.
Agenda da Transformação do Estado
O Ministério da Gestão atualizou, em reunião da Câmara Técnica de Transformação do Estado, na última terça-feira (5/11), o conjunto de medidas infraconstitucionais que pretendem dar mais efetividades ao Estado e, com isso, se contrapor à PEC 32.
No encontro, foram discutidos desafios como o novo PGD, o PL de Cotas, a portaria de carreiras, o trabalho temporário, a lei nacional de concursos, o avanço do governo digital, o papel das estatais e a revisão do decreto-lei 200, cuja primeira minuta deve ser apresentada em abril de 2025.
Em documento atualizado após a realização do encontro, o governo sinaliza favoravelmente à revisão da atual legislação referente às contratações temporárias, “sem recurso a nenhum tipo de alteração constitucional”.
“É importante, em especial para os governos estaduais, sem que esse processo se confunda com a precarização e desvalorização da função pública”, afirma o Ministério da Gestão e da Inovação.
Ao tratar da reorganização do complexo sistema de carreiras, um dos temas mais espinhosos dessa agenda, o MGI reconhece que este é um desafio de “médio e longo prazo”. E pondera que ainda falta uma solução estrutural para o problema, o que ficou patente no difícil processo de negociação salarial deste ano.
“A legislação de recursos humanos do serviço público é parametrizada por normas de épocas diferentes, cada uma refletindo uma configuração política e valores do momento em que foi votada. A estratégia proposta é baseada na promoção de ajustes incrementais, combinando concursos públicos, aumentos salariais diferenciados – equalizadores – e revisão das sistemáticas de progressão e promoção internas”.
Como temos noticiado aqui, algumas dessas premissas nortearam o processo de negociação salarial. Por exemplo, o percentual de carreiras com 20 padrões de progressão, portanto, mais alongado, passou de 30% para quase 85%.
Outro tema central da Câmara Técnica, ligada ao Conselhão, é a revisão do Decreto-lei 200, editado em 1967. A partir de diagnóstico de rigidez “nos regimes de pessoal, de execução orçamentária e financeira e de compras e contratos das organizações governamentais”, uma série de inovações está sob análise para dar mais flexibilidade à gestão.
A secretária-geral da AGU, Clarice Calixto, explica que a busca por flexibilidade na gestão tenta acabar com “puxadinhos” na administração, como é o caso do serviço social autônomo, no qual a Embratur foi enquadrada para dar conta de suas atribuições.
“Estamos abertos ao diálogo e temos como inspiração o espírito de consensualidade que foi incorporado pela Lindb (Lei de Introdução ao Direito Brasileiro)”, explica Clarice.
A agenda de Transformação do Estado deve ser atualizada ao longo de todo o governo, e também inclui outros temas relevantes como o uso das compras públicas para potencializar o desenvolvimento sustentável; o papel da Secretaria do Patrimônio da União; e as parcerias com estados e municípios.
JOTA