Experiências com a privatização dos serviços públicos não mostram saldo positivo mundo afora, nem em números, nem para seu povo
É extensa a lista de frases machistas e misóginas do presidente Jair Bolsonaro. Apologia ao estupro, incentivo ao turismo sexual e banalização das violências contra as mulheres sempre fizeram parte do repertório do capitão reformado nostálgico da ditadura. O conteúdo, entretanto, está longe de ser apenas polêmico e imoral. A cada reforma implementada, Bolsonaro e sua equipe aprofundam o machismo estrutural que pavimenta a sociedade brasileira. Agora, com a reforma administrativa, o ataque à emancipação das mulheres toma fôlego.
De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de agosto deste ano, a participação das mulheres no serviço público chegou a 59% em 2017, percentual relacionado principalmente à expansão do emprego público municipal, onde a mão de obra feminina é majoritária. Embora sejam maioria no serviço público, as mulheres têm remuneração média inferior a dos homens, nos três níveis federativos e nos três poderes. A discrepância, segundo a pesquisa, perpassa as três décadas analisadas (1986 – 2017) e vem aumentando.
Em 1986, a média salarial das mulheres no setor público era 17% inferior a dos homens. Em 2017, essa diferença atingiu 24,2%. O abismo favorável aos homens se mantém mesmo quando os níveis de escolaridade entre os gêneros são equivalentes. Além disso, mais homens ocupam cargos de dirigentes de alto escalão no nível federal. Os números mostram que o padrão estrutural de desigualdades emergiu mesmo que o ingresso no serviço público seja feito principalmente via concurso público e a regra da isonomia proíba remuneração desigual para a mesma função.
“Se os salários de entrada (no serviço público) são iguais, por que existe essa diferença? As mulheres ocupam cargos dentro das carreiras gerenciais gerais, mas quando a gente olha a ocupação dos cargos de chefia, a gente percebe quem consegue chegar aos cargos mais elevados e porque as mulheres não conseguem. Existe uma distribuição majoritária de cargos DAS entre homens. Mulheres ficam em cargos mais baixos”, explica a diretora-adjunta de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea, Janine Mello. A fala foi feita na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados, em dezembro do ano passado.
Mesmo diante dos dados que revelam um tipo de violência institucional contra as mulheres, a reforma administrativa, anunciada pelo governo federal como uma forma de “moralizar o serviço público” e “acabar com privilégios” não prevê nenhuma regra que corrija a discrepância salarial entre homens e mulheres neste setor ou exija igualdade de gênero na ocupação de cargos do alto escalão no funcionalismo. Ao contrário, o texto da proposta abre todas as possibilidades de interferência direta de empresas privadas nos métodos de contratação e remuneração de quem ocupará os cargos públicos, sobretudo com a privatização dos serviços.
Usuárias também são vítimas
Se em uma ponta a reforma administrativa tem potencial de aprofundar ainda mais a desigualdade salarial e de ocupação de espaços estratégicos no recorte de gênero, na outra, quando analisado quem usa esses serviços, as mulheres também saem prejudicadas.
O texto da proposta da reforma administrativa insere na orientação da administração pública o princípio da subsidiariedade, dando prioridade ao setor privado nas prestações de serviço à sociedade. Pela proposta, se o mercado já oferecer um serviço demandado pelo povo, não é necessário que o Estado o promova. Isso seria feito, como indica o texto da PEC, com o estabelecimento de “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados”, “inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”.
Experiências com a privatização dos serviços públicos não mostram saldo positivo mundo afora, nem em números, nem para seu povo. Não por acaso países da Europa, por exemplo, vêm traçando um caminho inverso, apostando na estatização dos serviços que estão nas mãos da iniciativa privada. A privatização dos serviços públicos leva à precariedade do serviço prestado – reduzindo potencialmente o acesso da população – e ao aumento geométrico de taxas cobradas em alguns desses serviços. Em Goiás, por exemplo, estado vizinho ao Distrito Federal, a conta de luz ficou 30% mais cara três anos depois da privatização da companhia energética do estado, um custo alto que pesou no bolso do consumidor.
“Imagina a privatização de hospitais, por exemplo. O governo defende a lógica do voucher, que seria um valor a ser dado às pessoas para que elas fizessem uso do serviço demandado. Agora, em um país que o governo resistiu em dar auxílio emergencial em um momento de pandemia e segue falando que o valor garantido é muito alto, imagine de quanto seria esse voucher. Imagine quais tipos de serviços ele cobriria. Será que cobriria uma UTI, por exemplo? Será que cobriria uma cirurgia mais complexa?”, questiona a secretária de Mulheres da CUT-DF, Thaísa Magalhães.
A dirigente sindical lembra que a estrutura social que vivemos é pavimentada pelo patriarcado, que impõe às mulheres o papel de principais responsáveis pelos afazeres domésticos e pelos cuidados e a sobrevivência de familiares. “Levar parentes idosos ao médico, fazer a matrícula dos filhos nas escolas e várias outras tarefas que demandam o serviço público, são ações realizadas majoritariamente por mulheres. Com o desmantelamento desse serviço, essas mulheres, na maioria negras e pobres, ficarão ainda mais desamparadas e sobrecarregadas”, avalia Thaísa Magalhães.
Segundo a pesquisa Outras Formas de Trabalho, da PNAD Contínua 2019, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mulheres de 14 anos ou mais dedicam 21,4 horas semanais aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas: 10,4 horas semanais a mais que os homens (11,0 horas por semana). Ainda de acordo com a pesquisa, 36,8% das mulheres brasileiras nessa faixa etária são responsáveis pelos cuidados com as pessoas do domicílio, contra 25,9% dos homens.
“São essas mulheres que mais acessam os serviços públicos ofertados pelo Estado brasileiro em suas diferentes esferas. Entre as mulheres responsáveis pelos cuidados de outra pessoa, 43% tem entre 25 e 49 anos de idade, ou seja, encontram-se em idade reprodutiva, e a maior parte é formada por pretas e pardas e de escolaridade intermediária. A necessidade de recorrer aos serviços públicos, assim, mostra-se um fator fundamental na mitigação da desigualdade social e de gênero que perdura no país. O acesso mais restrito e de menor qualidade ao serviço público, as terceirizações e transferências de responsabilidades para OS’s (organizações sociais) são prejudiciais aos grupos mais vulneráveis da população brasileira, e que ao mesmo tempo necessitam mais destes serviços”, reflete a supervisora do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em Brasília, Mariel Lopes.
Com grande parte do tempo dedicado ao trabalho doméstico e aos cuidados com familiares, as mulheres, frequentemente, “trabalham menos horas em seus empregos ou têm que abandoná-los por causa da carga horária com o cuidado”, indica o relatório da Oxfam. “Em todo mundo, 42% das mulheres não conseguem um emprego porque são responsáveis por todo o trabalho de cuidado – entre os homens, esse percentual é de apenas 6%”, mostra a pesquisa. Segundo o IBGE, cerca de 2,3 bilhões de pessoas vão precisar de cuidados em 2030.
Mesmo que a reforma administrativa não explicite o aprofundamento das desigualdades entre gêneros, a execução do texto da proposta faz coro aos objetivos perniciosos do governo federal ao universo dos direitos das mulheres. Com a aplicação dessa reforma, abrem-se brechas reais para a promoção de mecanismos institucionais capazes de manter os interesses do patriarcado, que confere às mulheres posições subalternas, restringindo sua atuação ao espaço doméstico.
Condsef/ CUT-DF