
Uma publicação recente da organização não governamental República.org, autoproclamada como “organização social e apartidária que apoia a valorização dos profissionais públicos no Brasil”, buscou retomar a discussão sobre a definição de “carreiras típicas de Estado”. Parte do texto advoga que a existência dessas carreiras dá sustentação ao papel do Estado em áreas essenciais, de forma a “propor soluções para problemas sociais e promover o interesse público”. Embora reconheça que o conceito promove a concentração de prestígio e a distorção remuneratória no serviço público, a publicação se propõe a ampliar o debate em torno de sua definição legal.
Considerando a influência que essa organização exerce sobre o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, que tem adotado uma série de políticas refratárias à organização sindical classista ao mesmo tempo em que incentiva processos de fragmentação, apresentar o posicionamento do movimento sindical sobre o tema é essencial, sobretudo para alertar aos atuais e futuros servidores que ingressam no serviço público dos enormes riscos que essa definição traz à organização política da categoria e à própria existência de serviços públicos de qualidade e universais para atender ao conjunto da população trabalhadora brasileira.
A expressão “carreiras típicas de Estado” circula há anos no vocabulário da tecnocracia brasileira como uma espécie de selo dourado reservado a determinadas categorias do serviço público. Supostamente, trata-se de carreiras cujas funções seriam “exclusivas” do Estado, como auditorias, fiscalizações, formulação de políticas e atividades de regulação. Mas basta um olhar minimamente crítico para perceber que esse conceito é um grande embuste político, jurídico e funcional.
Primeiro, porque ele naturaliza uma hierarquia artificial entre servidores, criando uma cisão entre aqueles que “são o Estado” e os demais, relegados a um papel de coadjuvantes ou auxiliares. Isso aprofunda divisões internas, mina a solidariedade de classe no funcionalismo e enfraquece a construção de lutas coletivas. A história mostra que toda vez que um setor do funcionalismo se deixou seduzir pela promessa de “distintividade profissional”, perdeu força para enfrentar os ataques aos direitos mais básicos e, ao final, foi tragado junto pelos mesmos projetos de desmonte.
Segundo, o conceito de “carreiras típicas de Estado” não tem definição jurídica sólida e objetiva, e serve mais como instrumento de manobra política do que como ferramenta de valorização real. É um rótulo elástico, moldável conforme os interesses dos governos de turno e das cúpulas corporativas que se prestam ao jogo. Não há coerência nem universalidade: o que é “típico” hoje pode deixar de sê-lo amanhã, ao sabor da conveniência ou da lógica do ajuste fiscal.
Terceiro, e mais grave: esse discurso serve de cortina de fumaça para projetos de privatização e mercantilização dos serviços públicos. Ao separar “o núcleo do Estado” do conjunto do funcionalismo, o conceito abre espaço para que tudo o que não for “típico” seja terceirizado, precarizado ou entregue à iniciativa privada. É a lógica do mercado em ação: manter uma pequena casta de burocratas bem remunerados, enquanto o grosso do trabalho – em particular aquele que atende diretamente à população mais pobre; é executado por contratos temporários, OSs, terceirizações ou “parcerias” com o mercado.
Na prática, portanto, o fetiche das “carreiras típicas de Estado” contribui para a fragmentação da luta dos servidores, promove uma ideologia meritocrática e individualista, e serve aos interesses de quem quer desmontar o Estado como espaço de políticas públicas universais. Em vez de fortalecer o serviço público, esse discurso o transforma em um castelo de feudos e privilégios.
O que precisamos é exatamente o oposto: construir unidade na luta pela valorização de todas as carreiras, garantir condições de trabalho, reconhecimento funcional e dignidade salarial para quem está na linha de frente das políticas públicas – da saúde à educação, da assistência social à demarcação de terras indígenas. Todas essas funções são essenciais. É o trabalho coletivo que faz o Estado existir.
Não existe carreira “típica” em um Estado que se diz democrático. O que existe é trabalho público que deve ser reconhecido como tal – e defendido em bloco, por toda a classe trabalhadora.
- Mônica Carneiro é servidora da Funai e diretora da Secretaria de Imprensa e Comunicação da Condsef/Fenadsef
Condsef/Fenadsef
- Mônica Machado Carneiro