Assédio moral, pressões indevidas, fim da meritocracia na escolha de cargos de chefia, nomes sem qualificação controlando áreas técnicas, critérios ideológicos na definição das ações, estímulo à divisão interna, clima de caça às bruxas — com direito a ameaças de processos administrativos e monitoramento de redes sociais dos servidores. A julgar pelos relatos colhidos pela coluna, o pedido de demissão do ex-juiz Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública), em abril, em meio à denúncia de que Bolsonaro tentou interferir na cúpula da PF (Polícia Federal) é só a ponta do iceberg.
Diversos órgãos públicos do governo federal, em especial os que trabalham com fiscalização, regulação e controle, vivem um clima de conflagração e insegurança desde a posse de Jair Bolsonaro na Presidência em janeiro de 2019. Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e o próprio Ministério da Saúde são exemplos.
“Assédio institucional” é a expressão que tem sido usada pelo doutor em economia pela Unicamp José Celso Cardoso Jr., presidente da associação dos servidores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e membro da coalizão Arca (Articulação Nacional das Carreiras Públicas para o Desenvolvimento Sustentável), que reúne entidades representativas de cerca de 100 mil servidores da União.
Esse tipo de assédio, segundo Cardoso Jr., ocorre “entre organizações dentro do Estado de níveis hierárquicos diferentes”. Ele se caracteriza por um “conjunto de discursos, falas e posicionamentos políticos, bem como imposições normativas e práticas administrativas” vindas de gestores públicos em situação hierárquica superior e implica “recorrentes, ameaças, cerceamentos, constrangimentos, desautorizações, desqualificações e deslegitimações” das organizações públicas “e suas missões institucionais e funções precípuas”.
A situação chegou a tal ponto na União que a Arca deverá lançar nas próximas semanas um “assediômetro” para receber, catalogar e divulgar os ataques institucionais no governo Bolsonaro. Um levantamento preliminar feito pela Arca já identificou 167 casos de “assédio institucional” somente em 2020.
“Isso está acontecendo em todos os órgãos, talvez só com exceção da Defesa, que está alinhada [a Bolsonaro]. Os casos começaram a pipocar e afetam todas as carreiras. Não são isolados, é uma conduta do governo. É uma orientação político-ideológica do governo no sentido de rumar a atuação dos órgãos públicos para uma outra direção, pró-mercado, e não pró-sociedade”, disse Cardoso Jr.
Instabilidade generalizada
A lista de órgãos conflagrados nos últimos meses não para de crescer. Houve crises internas no Ibama e no ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), com policiais militares de São Paulo substituindo servidores concursados em cargos-chave de fiscalização;
Na Funai (Fundação Nacional do Índio), com a chegada de policiais, militares da reserva, ex-missionários que são encarados como risco às políticas indígenas consagradas desde 1988;
Na Comissão de Ética Pública na Presidência da República, com denúncias de distribuição viciada de processos e a renúncia de um conselheiro;
Na Polícia Federal, com as denúncias do ex-ministro Moro de interferência indevida de Bolsonaro e a posse de um diretor interino vindo da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) por indicação de outro delegado próximo da família Bolsonaro, além da queda ruidosa do superintendente no Rio de Janeiro;
No Ministério da Saúde, com militares sem expertise técnica na área e a mudança abrupta, na sexta-feira (5), do sistema de cálculo das mortes pela covid-19;
No IBGE, cujas pesquisas sobre desemprego se tornaram alvo de ataques de Bolsonaro;
No Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), cujo diretor foi exonerado por Bolsonaro depois que levantamentos mostraram o aumento do desmatamento na Amazônia em 2019;
E, por fim, na Secretaria Especial da Cultura, com ascensão e queda da atriz Regina Duarte em meio a disputas ideológicas.
MPF vive crise interna
No MPF (Ministério Público Federal), uma crise interna está em andamento em reação a medidas tomadas pelo procurador-geral da República, Augusto Aras que, segundo observadores dentro e fora do MPF, foram ao encontro de interesses de Bolsonaro e de seus ministros.
Mais de 600 procuradores da República assinaram um manifesto que, na prática, impediria a recondução ao cargo do atual procurador-geral, em 2021.
Embora o MPF não integre o Executivo, é lá que iniciou-se a crise no órgão, a partir do momento em que Bolsonaro rompeu a tradição da lista tríplice, que era seguida pelos presidentes da República desde 2003, e escolheu Aras, que sequer chegou a se candidatar entre seus pares.
‘Apreensão, revolta, medo e indignação’
Os servidores tentam entender a dimensão do estrago que, segundo representantes das categorias ouvidos pela coluna, já deixa sequelas até psíquicas.
“Resumo o sentimento atual entre os servidores como um misto de apreensão, revolta, medo e indignação. Por que medo? A gente está vendo que muitos servidores das áreas de fiscalização, regulação, controle e investigação têm sido perseguidos, como os colegas do Ibama e do ICMBio, e se considerarmos o caso do Maurício Valeixo [ex-diretor-geral da PF], também na Polícia Federal. Muitos colegas têm sido perseguidos por exercerem estritamente suas atribuições legais. Isso perverte completamente o espírito do serviço público. É inaceitável que haja esse clima que se instalou em vários órgãos, Inclusive com notícias de que o governo monitora as redes sociais de servidores porque não aceita manifestações contra o governo”, afirma o auditor federal de finanças e controle Rudinei Marques, presidente do Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado), que reúne entidades representativas de aproximadamente 200 mil servidores públicos da União.
Instalou-se um clima de assédio institucional e moral muito grande. Até gostaria de ver os números, se a gente conseguisse levantar isso, dos problemas psicológicos que estão surgindo justamente em função disso. […] Há um clima de desconfiança, de abatimento. Funcionários que acumularam expertise por 20 anos, 30 anos, aí chega uma pessoa que não sabe nada e recebe um cargo de comando. Gera uma revolta. De repente você é comandado por alguém que não tem condições nem de ser comandado.
Rudinei Marques, auditor federal
O número de servidores buscando licenças de saúde para não ter que cumprir “ordens que entendem injustas e esdrúxulas, contrárias à Constituição” tem aumentado dia a dia. Por semana, segundo Cardoso Jr., chegam aos sindicatos “de três a quatro denúncias de assédio institucional”. Pela primeira vez em muitos anos, servidores do Ipea estão pedindo ao sindicato ajuda psicológica.
Servidores “arrependidos” com Bolsonaro
Um dado irônico é que servidores públicos da União foram uma importante base eleitoral de Bolsonaro em Brasília na disputa presidencial de 2018. A coluna indagou a Marques e Cardoso Jr. sobre o cenário de hoje entre os servidores.
Para Rudinei Marques, o apoio a Bolsonaro “está caindo vertiginosamente”, com servidores “arrependidos por terem depositado confiança no candidato Bolsonaro, que prometia inclusive avançar no combate à corrupção e agora vai ter acordo com o Centrão e a concessão de cargos importantes na gestão pública para condenados e ex-condenados da Justiça”.
“Aos poucos o pessoal vai entendendo que o combate à corrupção era eminentemente retórico. O apoio foi expressivo porque era ligado a um discurso conservador, o discurso do moralismo, mas agora as pessoas começam a se dar conta. O discurso da transparência, combate à corrupção, do apoio à meritocracia, era muito mais retórico do que um plano de governo.”
Segundo Cardoso Jr., é difícil ter um quadro definido do apoio dos servidores a Bolsonaro sem uma pesquisa de opinião específica, mas ele tem a impressão de que Bolsonaro “está perdendo apoio, não sei em que ritmo”. “Tem muita gente constrangida, que não declara. A maioria das entidades dos servidores está numa situação de oposição aberta, mas não significa que a base sindical já esteja”, disse o presidente do Ipea Sindical.
Servidores exonerados
Os setores ambiental e indígena têm sido especialmente alvos de conflito durante o governo Bolsonaro. O presidente se refere a elas com frequência e ambas foram alvo de interferências.
No Ibama, um fiscal do meio ambiente que multara Bolsonaro em 2012 por pesca irregular, José Olímpio Augusto Morelli, foi exonerado de um cargo em comissão no órgão no setor de transportes aéreos ainda em março de 2019. Depois, três dos mais destacados ocupantes de cargos de chefia na área de fiscalização de crimes ambientais foram exonerados de suas funções — os servidores de carreira Roberto Cabral, Hugo Ferreira Loss e Renê Luiz Oliveira.
A advogada Maria Laura Canineu, diretora da organização não governamental Human Rights Watch no Brasil, lembra que Bolsonaro “sempre criticou duramente os governos de esquerda, acusando-os de aparelhar a máquina pública e prometeu fazer um governo de especialistas e técnicos”.
O que temos visto, no entanto, é que em muitas áreas, ele tem nomeado pessoas não pela capacidade técnica. Pelo contrário. No Ibama, por exemplo, se você fizer o seu trabalho, sendo eficiente no combate ao desmatamento ilegal, inclusive em terras indígenas, você corre o risco de ser exonerado, como vimos recentemente. O presidente Bolsonaro tentou nomear como diretor geral da Polícia Federal um amigo de seu filho suspeito de dirigir uma rede de notícias falsas contra opositores. Este é o mesmo Bolsonaro que prometeu batalha implacável contra os privilégios e contra a corrupção.
Maria Laura Canineu, diretora da Human Rights Watch
Tudo indica que a ideia é desmobilizar, diz ex-Ibama
Presidente do Ibama durante o mandato de Michel Temer (2016-2019), a urbanista, advogada e ambientalista Suely Araújo disse que a nomeação de coordenadores estranhos à política ambiental “gera problemas evidentes de falta de conexão com a equipe”.
“Os servidores dos órgãos ambientais trabalham historicamente sob pressão permanente, com deficiências em termos de quantidade de recursos humanos e financeiros. Indicações de titulares de cargos importantes estranhos a essa realidade gera muito mais pressão, o sinal é de que o governo não confia no que os servidores fazem, de que quer desconstruir as ações nas quais eles vêm trabalhando a vida toda. Em termos de gestão pública, é uma opção míope”, disse Suely.
“Se é que o governo objetiva fazer política ambiental, deveria aproveitar a expertise da equipe e não tentar deslegitimá-la. Mas tudo indica que a ideia é desmobilizar mesmo, consolidar o desmonte das políticas públicas nessa área. E essa estratégia que caminha para o não fazer, para a inação calculada, ideológica, está presente no atual governo em outras áreas de políticas públicas, como educação, cultura, proteção dos direitos indígenas e outras.”
“Coordenadores que não coordenam”
Na Funai, quase todas as 39 coordenações regionais nos estados agora são ocupadas por pessoas estranhas aos quadros do órgão, segundo a INA (Indigenistas Associados), que representa os servidores do órgão. Alguns são militares da reserva das Forças Armadas.
“Há coordenadores que não coordenam, não conhecem a máquina, não conhecem a administração pública e agem como se todos os servidores fossem comunistas e não técnicos. Há uma disputa ideológica e uma falta de coordenação das próprias ações. Esse nível de descoordenação e descontrole sobre o que está acontecendo, de deixar ir rolando, isso realmente destrói a política indigenista, todas as bases que foram construídas até hoje”, disse um integrante da diretoria da INA que pediu para não ter o nome publicado por temer represálias do governo.
As principais bases, construídas na Constituição de 1988, são a demarcação e a proteção territorial das terras indígenas, a política de não contatar os grupos indígenas que vivem isolados e o efetivo acompanhamento às políticas sociais para os indígenas.
O impacto entre os servidores, formados com a noção de que a defesa dos indígenas é uma causa, mais que um objetivo e uma missão da Funai, é tremendo. “Teve muita gente que tirou licença psiquiátrica no começo. Vários foram sendo assediados e tiraram licenças. Pessoas que foram mudadas de cargo, gente mudada de coordenação. O impacto sobre os servidores é o de uma grande tristeza. Porque o servidor luta e não consegue muito ver a produção do seu trabalho. O ponto principal é que fica tudo descoordenado. Os órgãos vão fazendo, mas não tem como andar. Mas para os interesses da bancada ruralista, aí não é descoordenado, aí é intencional e bem coordenado. Por exemplo, menos ações de proteção territorial, não tem terras indígenas passando por processo de estudo e assim por diante.”
Por Rubens Valente, colunista de UOL