Como acontece com as novas administrações, o governo Bolsonaro recebeu em sua fase inicial um crédito de confiança e contou com a boa vontade da população. O presidente eleito prometeu destravar a economia e atrair investimentos, modernizando os serviços públicos. Era sabido que o governo precisaria driblar a falta de verbas, então os recursos privados seriam fundamentais. Um ano após a posse, para decepção geral, impôs-se uma realidade completamente diferente.
O que se vê é uma paralisia crescente na máquina estatal, por problemas que vão desde o estrangulamento das verbas e a falta de servidores até a desídia gerencial. Os craques em desenhar o futuro do País não fizeram o dever de casa e estiveram, até agora, mais ocupados em destruir do que em construir qualquer coisa. O governo renega as políticas existentes e não promove novas. Segundo diz, seu objetivo é rever a estrutura do funcionalismo em escala nacional e fazer uma “revolução digital” nos serviços. Mas o que se vê, por enquanto, são filas quilométricas nas repartições e uma crescente insatisfação da população.
A Previdência Social começou 2020 com quase dois milhões de pedidos de aposentadoria parados: faltam funcionários e o governo não contrata
Sem bolsa família
Um dos casos de inoperância mais gritantes é o do Bolsa Família, principal programa social e de distribuição de renda do governo brasileiro. Neste momento, a fila de espera pela Bolsa Família chega a 3,5 milhão de pessoas ou 1,5 milhão de famílias, um triste recorde. A média de concessões do benefício era, até abril do ano passado, de 260 mil mensais. Caiu para menos de cinco mil, sob a alegação de reformulação do programa e de realização de procedimentos de averiguação e revisão cadastrais. Enquanto isso, aumenta a fila de espera, que chegou a ser zerada em 2018, durante o governo Temer, e os potenciais beneficiários passam por sérias dificuldades, pressionando os serviços de assistência social dos municípios. Sem o dinheiro do Bolsa família, a população pobre vai se amparar nas prefeituras. Em várias cidades voltou-se a distribuir cestas básicas. A reação em cadeia prejudica as finanças dos municípios que já são precárias, diminui o mercado e o movimento no pequeno comércio e aumenta a tensão social. O governo congelou o programa mesmo nas regiões mais carentes. No Nordeste, onde 609 mil famílias em extrema pobreza recebem o benefício, a situação é mais greve. Um terço das cidades mais pobres do País não teve os auxílios liberados nos últimos cinco meses. O orçamento do programa caiu de R$ 32,5 bilhões, em 2018, para R$ 29,5 bilhões, no ano passado.
Quem paga a conta pela paralisia do governo é a população que mais depende dos serviços públicos. É o caso dos aposentados, que ouviram durante mais de um ano as ameaças de insolvência se a Reforma da Previdência não fosse aprovada. Foi, mas o atendimento a eles vive um verdadeiro colapso, 400 e poucos dias após a posse de Bolsonaro. A Previdência Social iniciou 2020 com quase 2 milhões de pedidos de aposentadoria parados. Apenas depois que o número se tornou público, o presidente do INSS, Renato Vieira, foi demitido. A fila de pedidos não atendidos baixou para 1,7 milhão. Mas a situação permanece desalentadora. Todos os processos protocolados depois da Reforma, em novembro, estão paralisados. A razão alegada é a falta de funcionários.
Concursos travados
O governo travou os concursos e a contratação de novos servidores. Primeiro, por falta de recursos. Segundo, como forma de pressionar os servidores, apostando na aprovação da Reforma Administrativa. É um raciocínio enviesado. Com o aumento previsto no número de pedidos de aposentadoria pelos atuais servidores, haveria aumento de trabalho para os que seguem na ativa, o que levaria as próprias categorias a apoiar a reforma. Ocorre que, em mais de um ano de gestão, o governo não conseguiu enviar para a Câmara seu projeto de novas regras e carreiras para o funcionalismo público — categoria que foi chamada recentemente de “parasita” pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Além do mais, a resistência do governo em preencher vagas só tem um efeito prático: a precarização do atendimento à população. O Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), associação que reúne entidades de servidores, alerta que o apagão no INSS pode se repetir em várias repartições. Pelas contas da instituição, só na Receita Federal faltariam mais de 21 mil servidores para se alcançar o quadro ideal. O déficit de servidores, em relação ao nível adequado, também seria alto no IBGE (65%), na Controladoria-Geral da União-CGU (61,5%) e no Banco do Brasil (43,9%). Diante do desastre, o governo voltou a se escorar na imagem do Exército para demonstrar eficiência e organização: prometeu contratar emergencialmente militares da reserva para destravar as fila de espera do INSS. Atualmente, a “força-tarefa” no órgão deve contar, nas contas do governo, com 9,5 mil servidores aposentados — em sua maior parte militares inativos. O problema, no entanto, é generalizado.
No programa Minha Casa Minha Vida, 2,7 mil famílias deixam de ter acesso à casa própria por dia, segundo informações da Caixa Econômica Federal. É gente que queria comprar um imóvel, mas não pode fazê-lo por causa da suspensão do programa para faixas de renda mais baixas. A faixa 1, para quem ganha até R$ 1,8 mil, é bancada em sua totalidade com verbas do orçamento federal e foi praticamente cancelada no final do ano passado — tanto para imóveis rurais como urbanos. Todas as operações nas faixas 1,5 e 2 do Minha Casa Minha Vida, destinadas para famílias com renda entre R$ 2,6 mil e R$ 4 mil, também foram suspensas por conta da concessão de subsídios, descontos a fundo perdido no valor do financiamento. Nesses casos, os subsídios são bancados pelo FGTS (90%) e pela União (10%). Em 2020, em uma demonstração de má vontade com o programa, o governo destinou apenas R$ 295 milhões para subsídios, quando deveria ter reservado R$ 900 milhões, o equivalente a 10% do total que será disponibilizado pelo FGTS neste ano.
População reclama
A prova de que ninguém está contente com o mau funcionamento da administração federal é o aumento no índice de reclamações contra os serviços públicos. No ano passado, o governo federal recebeu 80,3 mil reclamações de usuários, um aumento de 70,3% em relação às 47,1 mil recebidas em 2018, segundo o Painel das Ouvidorias da CGU. As manifestações estão relacionadas a uma maior conscientização dos usuários, mas também a uma insatisfação crescente com a baixa qualidade dos serviços. Entre os assuntos que mais provocam insatisfação estão a saúde, com 8,6 mil reclamações, e a educação, com 5,7 mil. Para tentar controlar a situação, um decreto publicado por Bolsonaro no início do mês regulamentou os chamados conselhos virtuais de usuários e deu um prazo de 180 dias para que o Ministério da Transparência coloque no ar uma ferramenta de denúncias sobre a má gestão dos serviços públicos.
Nos setores ideológicos bolsonaristas, o desmonte predomina. Políticas públicas são ignoradas e o prejuízo é palpável na educação, na saúde, na cultura e no meio ambiente. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) foram um fiasco, prejudicando centenas de milhares de jovens. Erros na correção do Enem 2019 afetaram a vida de 3,9 milhões de estudantes e provocaram 172 mil reclamações para o Ministério da Educação. Diante da incapacidade do governo para esclarecer os problemas no Enem, a Justiça chegou a suspender a divulgação dos resultados do Sisu, que seleciona alunos que fizeram o exame para cursos em universidades federais e estaduais. Problemas de sobra também são encontrados na Agência Nacional de Cinema (Ancine), que teve centenas de projetos de produção de filmes e séries suspensos e ficou boa parte do ano passado sem diretores. Tramitam na Ancine quatro mil projetos em diferentes etapas de análise, mas tudo está parado.
O governo Bolsonaro parece disposto a comprometer a qualidade dos serviços e o andamento das obras públicas. Ao enviar a proposta orçamentária para este ano, a administração federal previu investimentos de R$ 19 bilhões, uma queda de quase 30% em relação ao previsto na Lei Orçamentária de 2019 e o menor investimento desde 2007. A tendência é que o apagão da máquina pública se intensifique. Levantamento feito pelo Tribunal de Contas da União (TCU) mostra, por exemplo, que há cerca de 14 mil obras paralisadas no País. O despreparo e a desarticulação do governo se fazem perceber na interrupção de projetos, no desleixo com serviços essenciais e na quantidade anômala de decretos, projetos e medidas provisórias que morrem no Congresso Nacional ou no Poder Judiciário, por vício jurídico, inadequação técnica ou falta de diálogo político. A sensação de paralisia só cresce. A incompetência vai grassando na máquina pública e se convertendo, ao lado do autoritarismo e do desvario ideológico, em mais uma forte marca da administração federal.