Após mais de um ano, a proposta de emenda à Constituição (PEC) 32/2020, que trata da reforma administrativa, passou pela comissão especial e pode ser votada neste mês no plenário da Câmara Federal. A versão que será analisada pela totalidade dos deputados, no entanto, difere bastante daquela entregue pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em setembro de 2020.
Nas análises pelas quais passou nas Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) e na comissão especial da Câmara, a PEC teve dispositivos suprimidos e recebeu um substitutivo geral que teve, ao todo, sete diferentes versões. As mudanças refletem demandas de setores diversos do funcionalismo e das bancadas governista e de oposição.
Uma das principais alterações diz respeito à estabilidade dos servidores, que, na proposta do Executivo, passaria a ser restrita a algumas carreiras. O relator da PEC na comissão especial, Arthur Maia (DEM-BA), decidiu modificar o texto, mantendo o direito a todos os funcionários públicos.
Apesar das diferenças, após a aprovação do substitutivo na comissão, Guedes apontou avanços no texto em um material divulgado a jornalistas. Para ele, a PEC “moderniza a gestão pública ao definir critérios objetivos para demissão do servidor, atual e futuro, por baixo desempenho, e prever que futuros servidores, mesmo estáveis, perderão o cargo se este for considerado obsoleto ou desnecessário.”
O texto ainda pode sofrer novas alterações no plenário por meio de emendas. Caso passe, a proposta ainda tramitará no Senado, onde pode passar por outras mudanças.
Confira as principais diferenças da versão atual da PEC em relação à proposta original do Executivo:
Estabilidade
O que queria o governo: a partir da entrada em vigor das novas regras, teriam direito à estabilidade apenas os futuros servidores que ocupassem cargos das chamadas carreiras típicas de Estado – aquelas que não encontram correspondência na iniciativa privada. Mesmo nessas carreiras, antes de se tornar estável, o servidor precisaria passar por um período de avaliação de dois anos, no chamado vínculo de experiência, além de permanecer por um ano em efetivo exercício com desempenho satisfatório.
Como ficou: a estabilidade permanece garantida a todos os atuais e futuros servidores concursados. O substitutivo, no entanto, mantém dispositivos da PEC original que reduzem a abrangência da prerrogativa, como o que cria o contrato por prazo determinado e o que estabelece diretrizes para abertura de processo administrativo que pode levar à demissão por insuficiência de desempenho.
Avaliação de desempenho
O que queria o governo: uma das poucas mudanças para os servidores atuais seria a avaliação periódica de desempenho, que abriria a possibilidade de demissão em caso de resultado insatisfatório. As regras para as avaliações, no entanto, ainda não haviam sido propostas e seriam regulamentadas por meio de lei posterior à promulgação da PEC.
Como ficou: foram incluídas diretrizes para o procedimento, que ocorrerá em plataforma digital e com a participação do usuário do serviço público. Um processo administrativo para perda de cargo é aberto no caso de o servidor apresentar duas avaliações insatisfatórias consecutivas ou três intercaladas dentro do período de cinco anos. A avaliação ainda será usada para promoção ou progressão de carreira, de nomeação em cargos de comissão e de designação para funções de confiança.
Carreiras típicas/ exclusivas de Estado
O que queria o governo: a PEC dava tratamento diferenciado a cargos considerados típicos de Estado e aqueles que não entravam na classificação. Somente os ocupantes do primeiro grupo passariam a ter direito à estabilidade a partir da entrada em vigor das novas regras. Apesar disso, o texto não definia quais cargos seriam esse, deixando para uma lei complementar posterior regulamentar o dispositivo.
Como ficou: o substitutivo que vai a plenário não trata de carreiras “típicas”, mas de carreiras “exclusivas” de estado, e inclui sua definição, embora ainda deixe margem para regulamentação posterior. Entram na classificação aquelas que “exerçam diretamente atividades finalísticas afetas à segurança pública, à manutenção da ordem tributária e financeira, à regulação, à fiscalização, à gestão governamental, à elaboração orçamentária, ao controle, à inteligência de Estado, ao serviço exterior brasileiro, à advocacia pública, à defensoria pública e à atuação institucional do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, incluídas as exercidas pelos oficiais de justiça, e do Ministério Público”. As carreiras exclusivas de Estado não podem ser ocupadas por servidores com contrato temporário, com exceção das funções “cujas atribuições sejam complementares, acessórias, de suporte ou de apoio”.
Contrato temporário
O que queria o governo: havia previsão de contratação, mediante processo seletivo simplificado, de pessoal com vínculo por prazo determinado, com recursos próprios de custeio, em três hipóteses:
- calamidade, emergência, paralisação de atividades essenciais ou acúmulo transitório de serviço;
- atividades, projetos ou necessidades de caráter temporário ou sazonal, com indicação expressa da duração dos contratos; ou
- atividades ou procedimentos sob demanda.
O texto original não previa limitação para a duração dos contratos.
Como ficou: os contratos temporários têm limite de até dez anos, sem possibilidade de recontratação, e não podem ser utilizados nas carreiras exclusivas de Estado. O novo vínculo, no entanto, só poderá ser utilizado “com o intuito de suprir lacunas excepcionais e transitórias, que atrapalhem o funcionamento da máquina pública”, segundo o texto.
Cargos de liderança e assessoramento
O que queria o governo: o texto original previa a substituição dos cargos em comissão e das funções de confiança, atualmente previstos na Constituição, pelos cargos de liderança e assessoramento, que, segundo a redação, seriam destinados a atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas. Esses postos poderiam ser ocupados por indicados que não pertencessem aos quadros de servidores de carreira.
Como ficou: a versão aprovada na comissão especial mantém as modalidades atuais, excluindo os dispositivos propostos pelo Executivo.
Extinção de benefícios
O que queria o governo: o texto original vedava a concessão de vantagens “a qualquer servidor ou empregado da administração pública direta ou de autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista”.
Como ficou: o substitutivo incluiu ocupantes de cargos eletivos e membros de tribunais e conselhos de Contas. Embora em uma das versões preliminares integrantes do Judiciário e do Ministério Público (MP) também tenham constado do dispositivo, o texto final aprovado pela comissão manteve as categorias de fora, assim como militares. O substitutivo veda especificamente a concessão de:
- férias em período superior a 30 dias pelo período aquisitivo de um ano;
- adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada;
- aumento de remuneração dou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos;
- licença-prêmio, licença-assiduidade ou outra licença decorrente de tempo de serviço, independentemente da denominação adotada. A única ressalva é a licença para fins de capacitação;
- aposentadoria compulsória como modalidade de punição;
- adicional ou indenização por substituição, ressalvada a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento;
- parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e critérios de cálculo definidos em lei; e
- progressão ou promoção baseada exclusivamente em tempo de serviço.
Corte de jornada e salário em até 25%
O que queria o governo: a proposta original da PEC 32 enviada pelo governo vedava a redução de jornada de trabalho e remuneração para cargos típicos de Estado.
Como ficou: o relator da reforma administrativa na comissão especial, Arthur Maia, limitou a possibilidade de redução de jornada com diminuição proporcional de salário em até 25% e restringiu a medida a casos de crise fiscal. O dispositivo havia sido discutido durante a tramitação da chamada PEC Emergencial, promulgada em março, mas acabou retirado da versão final do texto. Em versão anterior do relatório, Maia chegou a retirar o artigo do relatório, mas em seguida o item retornou ao substitutivo que acabou aprovado.
Cargos obsoletos ou desnecessários
O que queria o governo: não havia previsão de desligamento de servidores de cargos que venham a ser considerados obsoletos ou desnecessários na PEC do governo.
Como ficou: o substitutivo criou uma nova possibilidade de desligamento de servidores, no caso em que os cargos que ocupam tornem-se obsoletos ou desnecessários. Fica resguardado direito à reintegração caso seja criado cargo com atribuições similares às do extinto em período igual ou inferior a cinco anos, ou de indenização. Caso não haja possibilidade de reintegração de todos os ocupantes do cargo, foram estabelecidos critérios para identificar os que permanecerão no serviço público, como a média do resultado das três últimas avaliações de desempenho, o tempo de exercício no cargo e a idade dos servidores. Os cargos ocupados por servidores estáveis admitidos até a data de publicação da emenda constitucional ficam preservados.
Carreiras policiais
O que queria o governo: não havia tratamento diferenciado a ocupantes de carreiras ligadas à segurança pública, como policiais.
Como ficou: o substitutivo prevê aposentadoria integral e paridade na revisão da remuneração de aposentados e servidores ativos, além de aumentar a pensão para dependentes em caso de morte. Também inclui entre as carreiras exclusivas de Estado policiais civis, federais, rodoviários, legislativos, peritos criminais, guardas municipais, agentes de trânsito e agentes socioeducativos.
Em versão anterior, havia previsão de foro privilegiado para delegados-gerais de polícias civis e da Polícia Federal, que ainda seria transformada em órgão de função jurisdicional, passando a ser fiscalizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Essas mudanças não entraram no texto que vai à plenário.
Previdência
O que queria o governo: apenas ocupantes de cargos típicos de Estado permaneceriam em regimes próprios de previdência social (RPPS). Aos demais caberia uma nova fórmula de enquadramento em RPPS e no regime geral da Previdência Social (RGPS).
Como ficou: nenhum servidor é enquadrado no RGPS. Para policiais, fica assegurada a totalidade da remuneração do cargo efetivo em que se der a aposentadoria, além da revisão no caso de aumento dos servidores ativos. Dependentes de policiais passam a ter direito à pensão equivalente à remuneração integral – hoje essa pensão é proporcional ao tempo de serviço.
Prerrogativas do presidente da República
O que queria o governo: desde que não houvesse aumento de despesas públicas, a PEC autorizava a criação, fusão e extinção de ministérios e órgãos públicos por meio de decreto presidencial. Ficaria a critério do chefe do Executivo a extinção de cargos públicos efetivos, em comissão, de liderança e assessoramento, funções de confiança, ocupados ou vagos, assim como gratificações de caráter não permanente.
Como ficou: os dispositivos foram excluídos da PEC pelo relator da matéria na CCJC, deputado Darci de Matos (PSD-SC). “A possibilidade de extinção dessas entidades mediante Decreto do Chefe do Poder Executivo acarretaria grave alteração no sistema de pesos e contrapesos, ínsito ao modelo de separação de poderes e ao controle da Administração Pública pelo Poder Legislativo”, justificou.
Mais tarde, na comissão especial, o relator Arthur Maia incluiu artigo que autoriza que sejam regulamentadas, por medida provisória, normas sobre “criação e extinção de cargos públicos, concurso público, critérios de seleção e requisitos para investidura em cargos em comissão, estruturação de carreiras, política remuneratória, concessão de benefícios, gestão de desempenho, regime disciplinar, processo disciplinar, cessão e requisição de pessoal”.
Vedação a atividades paralelas remuneradas
O que queria o governo: servidores de carreira típica de Estado não teriam direito a exercer qualquer outra atividade remunerada.
Como ficou: a vedação foi retirada ainda na fase de análise de constitucionalidade da PEC. Para o relator na CCJC, Darci de Matos (PSD-SC), a medida representava “restrição flagrantemente inconstitucional que não se justifica por ser o único tipo de vínculo da presente PEC a continuar tendo direito a estabilidade”.
Princípios da administração pública
O que queria o governo: aos atuais cinco princípios da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência –, o texto enviado pelo Executivo propunha se somar outros oito: imparcialidade, transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública e subsidiariedade.
Como ficou: ainda na análise da CCJC, o artigo foi eliminado da PEC. “Alguns dos novos princípios esboçam ligação com os atuais e podem vir a conflitar ao invés de andarem juntos, por exemplo: publicidade e transparência, impessoalidade e imparcialidade, competência e responsabilidade”, explicou Darci de Matos (PSD-SC), relator no colegiado. “Tais princípios, sem uma regulamentação e sem uma definição clara podem gerar inúmeros processos judiciais por improbidade administrativa pelo simples fato do gestor público não ‘inovar’ em sua tomada de decisões.”
Parcerias com entes privados
Um dos poucos pontos que geraram controvérsia na comissão especial e que acabou mantido integralmente como proposto pelo governo é a possibilidade de o Poder Legislativo de cada ente federativo editar normas gerais para delegar a particulares atividades exercidas pelo poder público. O dispositivo chegou a ser retirado em uma das diversas versões do substitutivo de Arthur Maia (DEM-BA), mas acabou entrando no texto final.
Fica permitido o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de entes ou órgãos privados, com ou sem contrapartida financeira, desde que não abranjam atividades privativas de cargos exclusivos de estado.
Gazeta do Povo