
O Concurso Público Nacional Unificado (CPNU), anunciado como marco de modernização e equidade no serviço público, revelou um traço escancarado da insensibilidade do Estado brasileiro frente às reivindicações básicas de mulheres e pessoas em condições de vulnerabilidade. A situação das candidatas gestantes, puérperas, lactantes e do candidato imunossuprimido não é apenas um descaso administrativo – é a prova de que o poder público e a máquina pública operam sob uma lógica tecnocrata, burocrática, excludente e cruel.
O Cebraspe e a ENAP insistem em afirmar que flexibilizar regras para gestantes ou pessoas com doenças graves seria um “privilégio”. Essa argumentação é, no mínimo, desonesta intelectualmente. A Constituição Federal (art. 5º, caput) não exige tratamento igualitário, mas equânime – ou seja, que considere as desigualdades concretas para garantir oportunidades reais.
Enquanto o Estado se esconde atrás do princípio da “vinculação ao edital”, ignora que:
- Licença-maternidade é direito constitucional (art. 7º, XVIII) – não um favor.
- A proteção à saúde de imunossuprimidos é dever do Estado (art. 196, CF) – não uma concessão.
- A amamentação exclusiva é recomendação da OMS e um direito da criança.
As adaptações necessárias não são adotadas não apenas porque a estrutura do Estado ainda vê a maternidade como um problema individual da mulher, e não como uma responsabilidade coletiva, social, o que é óbvio e evidente. Ademais disso, há uma inacreditável subordinação do poder político a um ordenamento burocrático inflexível que se interpõe para evitar que soluções justas, possíveis e perfeitamente legais sejam encontradas para atender às necessidades das trabalhadoras e de um trabalhador.
O Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) e a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) foram alertados diversas vezes – por ofícios, reuniões e até pedidos via Fala.Br. A resposta? Notas técnicas evasivas, pareceres jurídicos que distorcem o princípio da isonomia e a promessa vazia de “análises individualizadas”.
Enquanto isso:
Candidata com dias de pós-parto está cumprindo 8 horas diárias de curso, sendo “liberada” apenas meia hora antes – como se isso fosse suficiente para amamentar um recém-nascido e cuidar da saúde e das adaptações típicas do momento.
Um candidato transplantado, imunossuprimido, em isolamento e em gozo de atestado médico, é tratado como se sua condição fosse uma “escolha”.
Mães de bebês – com ou sem aleitamento exclusivo – são forçadas a escolher entre o concurso ou o cuidado com seus filhos.
Onde está o Ministério dos Direitos Humanos? Onde está o Ministério da Mulher? Revela-se oco e estéril o discurso fácil e genérico em favor “da mulher” quando uma situação concreta, de mulheres trabalhadoras, exige solução e ação.
Não faltam instrumentos jurídicos para resolver essa situação:
A proteção à maternidade e à infância é direito fundamental social mencionado no caput do art. 6º da CF. O STF, ao reconhecer que a mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade, expressamente afirmou que “a proteção à maternidade constitui medida de discriminação positiva” (Recurso Extraordinário (RE) 1211446 / SP, Tema 1072 de repercussão geral). Igualmente, a Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) também pode ser analogicamente aplicada a imunossuprimidos.
O princípio da razoabilidade exige que normas não anulem direitos fundamentais. O que falta, então? Vontade política. O Estado não pode ser cúmplice dessa crueldade.
Se o governo federal não age imediatamente para:
*Suspender a obrigatoriedade presencial para puérperas e pessoas com doenças graves;
*Garantir cursos remotos ou turmas especiais;
*Punir os órgãos que descumprirem a proteção constitucional;
então o CPNU estará manchado por um ritual de humilhação contra mulheres e pessoas em situação de vulnerabilidade.
*Chega de omissão. O serviço público deve servir ao povo – não ao arbítrio de burocratas insensíveis.
- Mônica Carneiro é diretora de Impresa da Condsef/Fenadsef e Dra. Camilla Cândido é advogada da assessoria jurídica da Condsef/Fenadsef pela LBS Advogadas e Advogados
Condsef/Fenadsef
- Por Mônica Carneiro e Dra. Camilla Cândido