Após assinaturas de 45 acordos salariais entre o governo Lula e sindicatos, distorções e desigualdades seguem como marca na estruturação dos vencimentos dos servidores federais. Em alguns casos, cargos de elite, com vencimentos que vão chegar a R$ 36 mil, conseguiram ter reajustes maiores do que trabalhadores com renda bem menor.
Em 14 das categorias que fecharam acordo com o governo, os profissionais que ocupam o nível mais avançado na carreira tiveram reajuste menor do que de outras sete carreiras da elite do serviço público.
Os dados são de levantamento da Folha feito a partir de 40 dos 45 termos de acordo assinados com o MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos). Foi comparada a tabela remuneratória de maio de 2023, após o primeiro reajuste concedido pelo governo federal, com a que valerá a partir de 2025.
Os projetos de lei de reestruturação das carreiras ainda serão enviados para aprovação no Congresso. De acordo com o MGI, 98,2% da força de trabalho do governo federal fechou acordo de reajuste e reestruturação de carreira. Para o próximo ano, o impacto orçamentário será de R$ 16 bilhões.
Carreiras de elite têm maior poder de barganha com o governo. Por isso, são favorecidas pela capacidade de articular com o Congresso e saem na frente nas negociações, segundo Humberto Martins, professor de gestão pública da FDC (Fundação Dom Cabral).
Essas categorias estão atreladas a áreas mais sensíveis do setor público, como segurança e finanças, e funções típicas de Estado, como diplomacia e gestão governamental. Para o professor, a proximidade com o poder faz esses servidores embarcarem em propostas disfuncionais, que sobrevalorizam suas carreiras.
“As distorções para cima têm um efeito tóxico e geram um vício de remunerações acima do razoável. O limite, aparentemente, é o teto [Constituicional, de R$ 44 mil]”, diz.
Segundo o MGI, o governo não quis dar às categorias um ganho salarial acumulado inferior à inflação prevista para os quatro anos da atual gestão. A pasta diz ainda que os acordos visaram dar racionalidade aos agrupamentos de carreira.
Parte da elite do Executivo, que inclui diplomatas, analistas de comércio exterior e analistas do Banco Central, terá aumento de 10,9% para o próximo ano. Para profissionais de nível mais avançado na carreira, o salário passará a ser R$ 33.086,10.
O aumento é maior do que o concedido a cargos mais baixos de assistentes e oficiais de chancelaria, por exemplo. Eles terão salário de R$ 5.516 no próximo ano, após reajuste de 9%.
Já os delegados e peritos criminais da Polícia Federal conquistaram aumento de 8,15% para servidores no topo da carreira. Com isso, a categoria vai manter a maior remuneração no Executivo entre os acordos analisados, R$ 36 mil.
O reajuste é superior ao de profissionais em fim de carreira no Inmetro, que tiveram aumento de 6,2%. O maior salário vai a R$ 23.108,23 no próximo ano.
O levantamento da Folha considera apenas o maior e o menor salário de cada um dos 40 acordos, e não de cada cargo. Um acordo pode beneficiar mais de uma categoria, como foi o caso do assinado pelas carreiras de previdência, saúde e trabalho, do Departamento Nacional de Auditoria do SUS (Denasus) de agentes de combate às endemias.
As desigualdades persistem até entre cargos de uma mesma categoria. Enquanto terceiros-secretários, etapa inicial na carreira de diplomatas, tiveram reajuste de 7,8%, os ministros de primeira-classe, último nível no Itamaraty, conseguiram aumento de 10,9%.
Reestruturação levou a recomposição de até 103%
Apesar do poder de barganha das carreiras de elite, o governo também negociou com categorias que estavam mais desestruturadas. O tempo sem reajustes e o congelamento de salários na pandemia, de 2020 e 2021, gerou desfalques em toda a administração pública, segundo Ursula Peres, professora de gestão de políticas públicas da USP.
Por isso, nos acordos com o MGI, houve carreiras que, além da recomposição salarial, também terão mudanças quanto à reestruturação. Isso alterou os níveis de progressão de carreira e, em alguns casos, aumentou salários em mais de 50%.
“Quem consegue e quem não consegue tem a ver com a importância na política estratégica, mas todas as carreiras tiveram perdas em função da pandemia e outras muito antes disso, porque já estavam há um tempo sem recomposição”, diz Ursula.
A reorganização atingiu sobretudo carreiras novas ou que foram mais afetadas por falta de recursos. O acordo com os servidores da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), por exemplo, se encaixa nessa categoria e foi um dos primeiros a ser fechado. Profissionais que ocupam o cargo de maior salário terão aumento de 44,7% para o próximo ano.
Analistas de tecnologia da informação também passaram por reestruturação e receberam aumento de 75%, o melhor resultado entre os cargos mais bem remunerados. Nessa categoria, os que ocupam cargos mais baixos e estão no início da carreira tiveram reajuste de 103%.
Mas, mesmo com reajuste elevado, essas categorias ainda têm o salário baixo comparado às carreiras de elite. Analistas de tecnologia no último nível da carreira receberão R$ 19.865,61 no próximo ano –R$ 13,2 mil a menos do que as categorias do topo do funcionalismo federal.
Para Humberto Martins, da FDC, conceder reajustes em um cenário em que as carreiras ainda estão desorganizadas é uma estratégia ineficiente. Ainda neste ano, o governo federal contava com 250 tabelas de remuneração e mais de 300 agrupamentos de carreiras.
Seria necessário que o Ministério da Gestão adotasse uma nova postura, mudando a estrutura de cargos para reduzir as tabelas de remuneração e, a partir disso, conceder os reajustes necessários, segundo Martins.
Folha de São Paulo