Propostas de reforma administrativa são recorrentes em governos de vários espectros ideológicos, particularmente quando enfrentam crises econômicas e sociais. Diante de cenários complexos, é fácil recorrer ao senso comum e a respostas simplórias, apontando o setor público como um todo como “causa” da crise.
Há meses, o governo federal brasileiro declara que irá apresentar uma proposta de reforma administrativa que corte carreiras, permita demissões e reduza salários de entrada de servidores públicos. Na ausência de estudos que sustentem os diagnósticos e as estratégias propostas, torna-se difícil promover um debate qualificado sobre a gestão de pessoas em governos, as motivações e problemas relativos aos processos envolvidos e as consequências possíveis de sua alteração.
Uma retórica ambiciosa de reforma administrativa por vezes parte do pressuposto simplório de que o setor público é uma massa amorfa e homogênea de cargos, salários, carreiras e organizações, tendendo a perder de vista a diversidade humana e organizacional que caracteriza a burocracia pública. Logo, estratégias do tipo “one size fits all” — que pretendem dar uma única solução a todos os problemas — podem prevalecer e, como pesquisas demonstram no mundo todo, tendem a falhar na sua implementação ou não geram os resultados esperados.
Há atualmente várias dimensões que estão na mesa do governo como objeto da reforma — como mudança salarial, introdução de sistemas de avaliação de desempenho, alterações nas carreiras, entre outras. Entretanto, aqui discutimos apenas um aspecto, por considerarmos um dos mais relevantes e de maior impacto: as mudanças relativas à estabilidade do servidor após seu período de estágio probatório.
Afinal, por que existe a estabilidade no serviço público? O que a justifica?
A estabilidade é uma característica das burocracias modernas, porque protege servidores públicos de pressões políticas no exercício da sua atividade, resguarda-os de demissões arbitrárias por interesse político e inibe o sequestro da máquina pública por motivos clientelistas e eleitorais. Ao analisar a construção das burocracias no mundo moderno, o sociólogo Max Weber coloca a existência de uma burocracia estável, isonômica e impessoal como uma das condições para a existência da democracia. Um fiscal do trabalho, da fazenda ou ambiental, por exemplo, deve observar regras e procedimentos no exercício da sua função e não pode facilitar ou dificultar a aprovação de um determinado processo em função da pressão de sua chefia.
As pressões políticas abrem margem para corrupção e favorecimento de determinados grupos. É exatamente essa denúncia que surge, nos últimos meses, em órgãos como a Receita Federal e na área ambiental.
Enquanto declarações do ministro da economia parecem propor uma maior separação entre política e administração, ao sugerir a proibição da filiação política dos servidores públicos, o eventual fim da estabilidade abre caminho para aparelhamento e uso político da máquina pública (lembrando que, no Brasil, o número de cargos de confiança no setor público ainda é bastante expressivo, mesmo em comparação com países da região, como o Chile).
Proibir a filiação partidária não restringe ninguém de manifestar preferências e agir de forma antiética, ao passo em que retirar a estabilidade, que é uma proteção formal à atividade profissional, amplia o espaço para favorecimentos e perseguições. Ainda, devemos a órgãos com funcionários autônomos e estáveis, como Polícia Federal, Tribunais de Contas, Controladorias e Ministérios Públicos, a descoberta de redes de corrupção sistêmica.
Como está colocado, o debate omite essa escolha fundamental: a sociedade está disposta a um maior espaço para influências políticas no serviço público em troca da possibilidade de demitir servidores?
Aqueles que propõem o fim da estabilidade justificam que em alguns países avançados o servidor público não tem estabilidade garantida na lei. É verdade, mas vale lembrar que a estabilidade também não existe em boa parte dos países menos desenvolvidos e mais corruptos do mundo. Normas profissionais, éticas, uma forte cultura democrática e consensos políticos em torno de políticas prioritárias, independentemente do espectro partidário, tornam muito rara a demissão dos servidores públicos no primeiro conjunto de países. Mas seria esse o caso do Brasil?
O fim da estabilidade também não garante maior flexibilidade no setor público — essa sim uma dimensão que precisa avançar, por exemplo, em áreas como compras públicas, contratações e procedimentos rotineiros.
Apesar de a gestão Bolsonaro ser marcada por propostas simplistas e sem base em evidências para problemas públicos complexos, há espaço e necessidade para se debater pontos de melhoria na gestão de servidores públicos. Como, por exemplo, discutir estratégias para superar a rigidez imposta pelo número excessivo de quase 300 carreiras que existem apenas no setor público federal e que dificultam a alocação dos servidores de acordo com a necessidade real de gestão.
Pode-se questionar, inclusive, se faz sentido a estabilidade para determinadas carreiras e funções, mas não se deve considerar que acabar com a estabilidade é uma medida benéfica em todos os casos. Há uma grande diversidade do serviço público e não é razoável que os mesmos processos se apliquem a uma especialista em políticas públicas e a um técnico-administrativo, a uma delegada da Polícia Federal e a um diplomata, por exemplo.
Há ainda vários outros desafios a serem enfrentados. Como tornar o estágio probatório mais efetivo? Como regulamentar e implementar avaliações de desempenho que façam sentido para as diferentes atividades públicas e que sejam vinculadas a incentivos e punições adequados? Aliás, o que impede que esses instrumentos, que já existem na lei, funcionem na prática?
A qualificação da gestão pública exige um intenso trabalho de natureza incremental, com menos visibilidade midiática e apelo político do que o anúncio de uma grande reforma. A solução de longo prazo para a qualificação do serviço público passa por um diagnóstico baseado em evidências dos reais problemas. As soluções não são simplistas nem mágicas. Elas passam pela identificação, difusão e premiação de melhores práticas, de treinamentos, pelo uso de dados para tomada de decisão, pela implementação adequada de mecanismos de participação e coprodução de serviços públicos, e, principalmente, pelo reconhecimento da centralidade da gestão pública para as políticas de desenvolvimento e inclusão social.
Jornal Nexo