O último dia (18/12), marcou a décima quarta audiência de um controverso processo de negociação, conduzido no Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a proteção das terras indígenas no Brasil. As discussões ocorrem após uma decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, que determinou a instituição de uma comissão especial de autocomposição no âmbito das ações de controle concentrado de constitucionalidade que discutem a Lei 14.701/2023, responsável por introduzir no ordenamento jurídico brasileiro a inconstitucional tese ruralista do chamado “marco temporal” para a demarcação de terras indígenas.
Vale lembrar que, após anos de adiamento, o julgamento do RE 1.017.365 (tema 1031 da sistemática da repercussão geral) foi encerrado no próprio STF com uma acachapante vitória dos povos indígenas, por 9 votos a 2, quando a tese foi declarada inconstitucional. O Congresso Nacional, em reação, transformou o marco temporal em lei, e derrubou os vetos presidenciais à medida legislativa.
Foi nesse cenário que uma conciliação sobre tema já pacificado, entre partes desigualmente posicionadas, e inscrita em um ambiente político assimétrico, conflitivo e fortemente marcado por ameaças se iniciou, trazendo graves consequências aos direitos e garantias dos povos indígenas no Brasil, incluindo uma explosão de novos casos de violência direta contra seus corpos e territórios.
Em um colegiado composto por 24 integrantes, entre representantes de partidos políticos e de organizações autoras das ações discutidas, do Governo Federal, do Congresso Nacional, dos estados e municípios, o movimento indígena, organizado nacionalmente pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), possuía apenas seis membros. Durante a segunda reunião, realizada em 28 de agosto de 2024, a entidade, acertadamente, retirou-se do processo, tendo em vista a falta de clareza sobre os objetivos do trabalho, a evidente desvantagem numérica em situações deliberativas e a ausência de resposta aos pedidos apresentados, em particular a suspensão da lei em vigor, que tem impactado de maneira direta a continuidade do reconhecimento estatal dos territórios indígenas.
O ministro Gilmar Mendes, por outro lado, optou por manter a conciliação, desde já ilegítima a partir da ausência de uma das partes. Além disso, em uma nova decisão monocrática, tratou de intervir na autonomia da organização política dos povos originários, ao determinar ao Ministério dos Povos Indígenas, ou seja, ao governo federal, que procedesse à indicação de cinco lideranças para compor a comissão, contrariando os critérios próprios de representatividade construídos pelo movimento social indígena organizado.
A questão, portanto, que tem reverberado sobre toda a institucionalidade estatal, demonstra abertamente o caráter extremamente frágil e sujeito a pressões indevidas de nossas instituições ditas democráticas. O tema também impacta diretamente toda a população trabalhadora brasileira, amplamente beneficiada pela segurança hídrica, pela proteção da sociobiodiversidade e pelos conhecimentos socioculturais, linguísticos e científicos construídos pelos povos indígenas em todos os biomas do país, também responsáveis por economias que, para além do resultado monetário, manejam as paisagens para garantir a proteção das florestas brasileiras e a reprodução dos ecossistemas.
Outras problemáticas gerais estão presentes nesse processo, sobretudo porque a usurpação dos direitos territoriais dos povos indígenas implicaria, necessariamente, em maior concentração fundiária e de renda por aqueles que já abocanham, historicamente, as riquezas nacionais. O agronegócio brasileiro, que infla sua participação no PIB por meio de propaganda midiática é, na verdade, marcado pela mecanização e pela superexploração da mão de obra, que gera pouquíssimos empregos decentes. Sua bancada parlamentar atua permanentemente para manter essa situação, conquistar incentivos fiscais, financiar campanhas políticas e defender medidas altamente deletérias a toda a coletividade, a exemplo do uso indiscriminado de agrotóxicos.
Esses quatro meses de “conciliação” serviram, portanto, para demonstrar a centralidade da questão indígena para o país. Enquanto o governo federal aplica políticas de austeridade fiscal exigidas pelo capital especulativo, por meio de cortes em programas sociais como o BPC e na própria política de valorização do salário mínimo, contrariando o programa político eleito pelo voto popular, os ruralistas pleiteiam indenizações vultuosas ante a devolução das terras indígenas que invadiram.
Entre os temas centrais da “negociação” sem representatividade política indígena encampada no STF, destacam-se o negacionismo científico que intenta intervir na construção dos laudos e instrumentos antropológicos; amplos ataques ao trabalho dos servidores públicos da Funai, cujos atos administrativos gozam de presunção de legitimidade e veracidade; tentativas de impor necessidades de desenvolvimento econômico aos povos indígenas para mascarar a permanente demanda por demarcação de seus territórios e iniciativas para transformar as terras indígenas em ativos de mercado.
A bancada do agro atua, sobretudo, pela inversão completa do sentido do instituto da reparação histórica, com o objetivo de transformar os devedores em credores e, assim, subverter a necessária discussão sobre os amplos passivos econômicos, sociais e ambientais acumulados por cinco séculos de violência estatal e social amplamente documentadas contra os povos indígenas no Brasil, e transformá-la em um debate caduco sobre direitos de indenização, segurança jurídica e propriedade dos invasores e possuidores privados.
Enquanto a dita conciliação caminha, agora até fevereiro de 2025, representantes da Bancada Ruralista reafirmam que “não cabe ao STF interferir nas decisões do Congresso que, no caso do marco temporal, já aprovou legislação”; propõem “critérios para reconhecimento de nacionalidade de indígenas pela Funai”, em ataque expresso aos direitos de povos transfronteiriços; avançam na Câmara propostas que permitem a ação da polícia para “retomada de propriedades invadidas no prazo de 48 horas”, que “permitem retirada de invasores sem ordem judicial”, que propõem que “terras produtivas não podem ser destinadas para reforma agrária, mesmo se descumprirem função social e violarem legislações trabalhista e ambiental”; protocolam CPI para investigar demarcações de terras indígenas; e ameaçam a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 48, que tem a intenção de consolidar a tese defendida por eles, supostamente em processo de negociação para busca de um consenso, na Constituição.
É hora de toda a população trabalhadora brasileira e suas entidades de classe encamparem, em suas bandeiras de luta, a defesa intransigente dos direitos territoriais dos povos indígenas, acumulada com uma discussão que tenha como horizonte o cálculo e a compensação dos passivos históricos acumulados por essas populações e um programa de financiamento estatal robusto para a aceleração dos procedimentos demarcatórios. Somente a demarcação das terras indígenas, direito originário dos primeiros habitantes do que hoje nomeamos Estado nacional brasileiro, dará segurança jurídica e estabilizará as relações sociais e espaciais entre as partes envolvidas nesse conflito político.
Mônica Carneiro é secretária de Comunicação da Condsef/Fenadsef e especialista em indigenismo da Funai
Por Mônica Carneiro