Dois temas que geram muita insatisfação na sociedade brasileira devem entrar na pauta de votação da Câmara dos Deputados nesta semana. Um deles é o marco temporal de demarcação de terras indígenas, previsto no Projeto de Lei 490/07 (PL 490/07), e o outro é a Medida Provisória 1154/23 (MP 1154/23), sobre a estrutura de ministérios do governo Lula.
De acordo com a Agência Câmara, a pauta oficial do plenário ainda não foi divulgada, mas o presidente da Casa, Arthur Lira, já anunciou que a análise do marco temporal deve ocorrer nesta terça-feira (30). O PL, que teve aprovada tramitação em regime de urgência, determina que só serão demarcadas as terras indígenas tradicionalmente ocupadas por esses povos em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
A urgência foi aprovada sob protesto das bancadas do PT, Psol, PCdoB, PV e da Rede. A deputada Célia Xakriabá (Psol-MG) afirmou que a Câmara não deveria analisar a questão antes da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema. “O PL 490/07 quer transformar em lei a tese do marco temporal, que está prestes a ser julgada no STF. E ainda há 14 projetos de lei de retrocesso apensados a ele, abrindo os territórios dos povos indígenas de isolamento voluntário”, criticou. O julgamento no STF, marcado para 7 de junho, vai definir que a promulgação da Constituição deve ser adotada como parâmetro. O relator da ação, ministro Edson Fachin, votou contra.
A reação contrária também ganhou coro do deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), que foi ministro do Meio Ambiente no segundo governo Lula. Segundo ele, foi formada uma “ampla aliança para usurpar direitos dos povos indígenas”. Já o Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) pediu à Advocacia Geral da União (AGU) que revogue parecer enviado ao STF em 2017 e, portanto, construído em defesa dos interesses dos integrantes e apoiadores da gestão de Michel Temer (MDB).
Parecer do genocídio
O atual presidente do CNDH, André Carneiro Leão, afirma que a mudança de posicionamento é necessária já que o documento bate de frente com normas e legislações vigentes, incluindo a própria Constituição. Além disso, ele afirmou que é possível supor que o posicionamento vigente tem relação com a posição ideológica do governo da época. Órgãos ligados à defesa da demarcação de terras indígenas, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), referem-se ao parecer como “parecer antidemarcação” ou mesmo “parecer do genocídio”.
Na contramão de tantos argumentos contrários, o relator do PL 490/07, deputado Arthur Oliveira Maia (União-BA), apela à insegurança jurídica para defender interesses de grandes latifundiários e mineradores.
Esvaziamento
Os povos indígenas também estão sob ataque na tramitação da MP 1154/23, que define a estrutura dos ministérios que compõem o governo Lula. A Medida Provisória precisa ser votada pela Câmara e pelo Senado até a próxima quinta (1º) ou perderá a validade. Uma comissão mista aprovou na quarta-feira (24) parecer do relator da MP, deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), que alterou principalmente a estrutura dos ministérios dos Povos Indígenas e também do Meio Ambiente.
Pelo texto aprovado na comissão, a demarcação de terras indígenas deixaria de ser responsabilidade da pasta criada essencialmente para isso e passaria ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, como era no governo Bolsonaro. Já o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas deixaria de ser responsável pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR), que estará vinculado ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos; e pelos sistemas de saneamento básico, resíduos sólidos e recursos hídricos, que vão para o Ministério das Cidades.
Estrutura bolsonarista
As alterações foram duramente criticadas pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Na quinta-feira (25), ela acusou “uma parte dos bolsonaristas” de tentarem transformar a estrutura da Esplanada dos Ministérios da gestão de Lula “em uma estrutura bolsonarista”. “Neste momento a democracia continua sendo ameaçada, a política de meio ambiente é ameaçada, a política de direitos humanos está ameaçada”, continuou. “A melhor coisa que a gente faz é resistir, implementando o programa que o presidente Lula aprovou nas urnas.”
Um dia antes, Marina Silva havia dito que se o Congresso aprovar as mudanças propostas por Bulhões, a imagem do Brasil pode ficar comprometida no cenário internacional. “Não basta a credibilidade do presidente Lula, ou da ministra do Meio Ambiente. O mundo vai olhar para o arcabouço legal e ver que a estrutura do governo não é a que ganhou as eleições, é a estrutura do governo que perdeu. Isso vai fechar todas as nossas portas”, disse ela na Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados.
Perplexidade e indignação
A titular da pasta do meio-ambiente também falou sobre a questão da demarcação das terras indígenas. “A proposta de retirada da demarcação de terras indígenas e da Funai do Ministério dos Povos Indígenas é um dos piores sinais”, afirmou. “Estamos dizendo que os indígenas não têm isenção para fazer o que é melhor para eles mesmo em relação a suas terras”, completou. Sônia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, argumenta que as mudanças “só reduzem a proteção, seja da Amazônia, da Mata Atlântica ou do Cerrado”.
Quem também se levantou contra os dois temas foram mais de 80 entidades ligadas a ciência, tecnologia e inovação. Elas endossaram carta divulgada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O grupo disse ter recebido as alterações com “perplexidade e indignação” e cobraram que os senadores “detenham esse ataque ao meio ambiente, que hoje constitui o principal fator a fortalecer, no plano internacional, a imagem de nosso país. Também apelamos para que mantenham o respeito aos povos originários e a seus direitos, que a Constituição Federal consagrou”. Além deles, parlamentares governistas já falaram que poderão ir ao STF contra as mudanças da estrutura de governo.
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Isnaldo Bulhões, defensor da MP, usa de argumentos genéricos para tentar remar contra a maré de críticas. Fala em “princípio constitucional da eficiência administrativa e da continuidade das políticas destinadas aos povos indígenas”. Sobre as alterações no Ministério do Meio Ambiente, mais generalidades. “Considerando que tal cadastro, de forma simples, é um registro público eletrônico nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, que tem finalidade de integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, materialmente, entendemos oportuno e relevante que tal competência seja exercida pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos”, opinou.
Vini Jr. e Petróleo no Amazonas
Outros dois temas de grande repercussão estão na pauta da semana na Câmara dos Deputados. Na terça-feira (30), às 13h, os parlamentares debatem, em comissão geral, “ações e soluções para os reiterados casos de racismo ocorridos na Espanha contra o jogador de futebol Vinícius Júnior, que atua pela equipe do Real Madrid”. Vini Jr., como é mais conhecido, foi alvo de insultos racistas em um jogo do Campeonato Espanhol realizado no dia 21 deste mês.
Já na quarta-feira (31), a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável debate a ideia de explorar petróleo e gás na foz do rio Amazonas. A Petrobras está tentando conseguir uma licença para isso, mas o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) já emitiu uma nota técnica apontando fragilidades e riscos de autorizar essa exploração na região. “Na região, vivem comunidades tradicionais e povos indígenas que seriam severamente impactados pelas atividades petrolíferas, especialmente em situações de vazamento de petróleo que poderiam causar danos irreparáveis à natureza e às populações que dela dependem”, afirma o deputado Ivan Valente (Psol-SP), que pediu a realização do debate.
Rede Brasil Atual