Por Rubens Valente
Agência Pública
Jornalismo investigativo
Uma planilha produzida por uma servidora bolsonarista da direção da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Brasília, à qual a Agência Pública teve acesso, revela como ocupantes de cargos diretivos no órgão foram avaliados como “a favor” e “contra o governo”, o que deu início a uma grande troca de servidores. Na legenda do documento, alguns nomes indicados para os cargos são assim descritos: “Fazem campanha a favor do Governo dentro de terra indígena”.
A planilha foi produzida, de acordo com o registro do arquivo em Excel, pela servidora Adriana Ariadne Albuquerque Marques em setembro de 2019, dois meses depois da posse do atual presidente da Funai, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier. Na época, Adriana – que nas suas redes sociais compartilha e apoia memes e mensagens a favor do presidente Jair Bolsonaro – atuava como coordenadora do gabinete da Dages (Diretoria de Administração e Gestão) do órgão indigenista, em Brasília.
Localizada por telefone, a servidora escreveu em mensagem à Pública: “Não trabalho mais na área e não tenho essa planilha. Sugiro que entre em contato com a Chefa de Gabinete do Presidente da Funai, ele poderá te dar informações!”.
Em setembro de 2019, Xavier passou a promover uma grande mudança nas CRs (Coordenações Regionais) da Funai a fim de ampliar a presença de militares, uma prática que já havia começado na gestão do seu antecessor, o general da reserva Franklimberg Ribeiro de Freitas.
O processo foi marcado por “perseguição a servidores de carreira e a sua substituição por profissionais sem experiência alguma com a política indígena”, segundo o levantamento “Fundação Anti-Indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, divulgado no mês passado pela INA (Indigenistas Associados) e pelo INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). O resultado foi que atualmente, de acordo com o estudo, das 39 CRs no país, “apenas duas contam com chefes titulares servidores do órgão, já tendo sido nomeados 17 militares, três policiais militares, dois policiais federais e seis profissionais sem vínculo anterior com a administração pública”.
A planilha de 2019 esclarece quais foram os critérios políticos utilizados para as substituições. Ela lista os 39 nomes dos chefes das CRs nos Estados e informa a suposta posição de cada um, se “contra” ou a “favor” do governo de Bolsonaro. Ao lado de seis dos “contrários”, um campo da planilha recomenda: “Colocar um militar”.
Um grupo de 11 servidores está marcado em vermelho. Na legenda do documento, é indicado como ação: “Retirar com urgência da CR”. De fato, pelo menos oito desses servidores foram substituídos nos meses posteriores à confecção do arquivo, segundo levantamento feito pela Pública.
Neto e um dos principais auxiliares do líder indígena Raoni, Patxon Metuktire foi exonerado do cargo de coordenador regional da Funai em Colíder (MT) em fevereiro de 2020. Na planilha, seu nome aparecia em vermelho, ou seja, deveria ser destituído com urgência, e trazia a seguinte informação: “Ligado ao Raoni”.
Patxon, que depois de um ano passou a atuar na saúde indígena, disse que só ficou sabendo da sua exoneração pelo “Diário Oficial” e nunca recebeu uma explicação sobre o motivo da troca. Ele atribui sua saída ao papel e ao significado de Raoni no movimento indígena. Sua demissão ocorreu poucos dias depois de um encontro promovido por Raoni na aldeia Piaraçu, em Mato Grosso, no qual diversas críticas foram feitas ao governo Bolsonaro.
“Ninguém falou com a gente [o motivo]. O governo tirou muitas pessoas, quando Bolsonaro entrou, ele tirou muitas pessoas. Os servidores que trabalhavam lá, os cargos comissionados dedicados à causa indígena, foram trocados. O cacique Raoni é uma das maiores lideranças do Brasil e o presidente [da Funai] sequer recebe ele. O Bolsonaro não abre diálogo com meu avô. Eles recebem indígenas que arrendam terras, garimpeiros, madeireiros, mas quem luta pela preservação do território eles não recebem”, disse Patxon.
No campo das indicações para substituir esses nomes “contrários” ao governo, a planilha listou militares e policiais, além de um indicado pelo deputado Alceu Moreira (MDB-RS), um dos mais ativos da bancada ruralista no Congresso, para a CR de Guarapuava (PR).
Para a CR de Tapajós, no Pará, o levantamento sugeriu o nome de Moisés Lívio Sá da Silva, que seria um “indígena e engenheiro do Exército, nome forte entre os indígenas”. “Contra as ONGs. Está criando a primeira cooperativa mineradora indígena”, diz a planilha. A Pública não conseguiu falar com Silva. Ele chegou a responder mensagem pelo telefone, mas depois não deu uma entrevista.
O nome de Jackson Abrão é recomendado para a CR de Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Sobre ele, a planilha afirma: “Está na preparação para o presidente Bolsonaro ir a Manaus pra discutir a questão de mineração em terra indígena. É um dos maiores aliados do Governo. Expulsou todas as ONGs da região”.
O nome de José Lucas Duarte é recomendado para a CR de Manaus, com a informação de que é um “indígena amazônico da etnia Tucano, está criando a primeira cooperativa mineradora indígena”.
Outro nome favorável ao governo citado na planilha é o do dentista Fortunato Luiz Godoy, servidor do Ministério da Saúde, que seria uma “indicação dos índios cinta-larga e suruí” para a CR de Cacoal, em Rondônia. À Pública, Godoy disse que não chegou a ocupar cargo na Funai, que conhece os indígenas da região e que não lembra “detalhes” de uma indicação para o cargo, mas confirmou apoiar Jair Bolsonaro. “Desde criancinha [apoia Bolsonaro]. Sou doente, pode ficar tranquilo.”
Nas redes, autora da planilha comparou Bruno e Dom a “Débi & Lóide”
Em suas redes sociais, a servidora que criou a planilha de 2019, Adriana Marques, reproduz o rosário bolsonarista com ataques à esquerda, a feministas, a petistas, aos defensores do direito ao aborto. Em junho, depois que foi noticiado o desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips perto da terra indígena Vale do Javari, a servidora ironizou o assunto pelo menos duas vezes.
No dia 13, ela compartilhou um meme da internet que comparava os desaparecidos à dupla da comédia de cinema Debi & Lóide. “Partiu aventura na Amazônia”, dizia o meme. A servidora colocou emojis dando risadas e brincou: “Ô povo ruim”. No mesmo dia, compartilhou um meme indagando “onde está Wally”.
Depois que os corpos de Bruno e Dom foram encontrados, a servidora da Funai escreveu no Facebook, no dia 16 de junho, que “os esquerdistas queriam uma nova Mariele!”. Após reclamar de suposto “uso político” das mortes pela esquerda, ela escreveu que “não existem anjos nesse caso (nesse caso, talkey) e muito menos defensores de causas ambientais, todos são culpados e cada um arcou com a sua irresponsabilidade”, sem explicar ou provar o que estava insinuando.
Localizado por telefone pela Pública, o então diretor da Dages, Fernando Carlos Wanderley Rocha, disse que “não trabalhou com essa planilha” e que “isso deve ter sido entre ela [Adriana] e o presidente”. “Essa distribuição de gente para ocupar determinados cargos escapava de mim”, disse Rocha, que foi nomeado ao cargo por Xavier naquele mesmo setembro de 2019.
Indagado se soube da existência da planilha, o ex-diretor confirmou: “É, teve alguma coisa nesse sentido. Mas eu não acompanhei”. Perguntado se a servidora comentou com ele sobre estar elaborando o trabalho, Rocha afirmou: “Alguma coisa houve nesse sentido, mas realmente eu não tenho detalhes, não sei quem estava lá ou o que que foi feito, a quem foi entregue.” O ex-diretor disse ainda que “[…] não tive nada a ver com isso, eu estava focado em outros problemas, problema de administração de material, tive muito problema nesse sentido”.
“Toda troca de administração, os cargos de confiança eram trocados. Isso não tem nada de excepcional”, argumentou o ex-diretor, consultor da Câmara dos Deputados, que elaborou em 2014 um estudo que atacava a demarcação de terras indígenas no país e atuou, assim como Xavier, junto à bancada ruralista numa CPI contra a Funai e o Incra.
Em outro texto, de 2012, Rocha defendeu a exploração agropecuária das terras indígenas. Em ação civil pública movida na Justiça Federal para pedir o afastamento de Xavier do cargo – que acabou não acolhida pelo Judiciário – a DPU (Defensoria Pública da União) e a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) mencionaram que, “apesar de completamente alinhado com a política de Marcelo Xavier para a Funai, Rocha pediu para deixar o cargo em junho de 2020, após saída de Sérgio Moro do Ministério da Justiça”.
Segundo a petição da DPU e da APIB, Xavier “nomeou Adriana Ariadne Albuquerque Marques como coordenadora de Gabinete da Diretoria de Administração, sendo responsável por gerenciar nomeações e exonerações”.
De acordo com o levantamento do Inesc e da INA, o impacto das nomeações nas CRs realizadas a partir da posse de Xavier na Funai “foi absurdo” na “rotina dos servidores que insistiam em suas posições técnicas”.
“Retirados de suas atribuições, sem acesso a processos nos quais estavam envolvidos, [os servidores técnicos] passaram por deslocamento de funções e lotações à revelia, algumas com mudança de cidade. Além do crescimento vertiginoso dos processos administrativos disciplinares (PAD), os servidores também se viram cerceados em sua liberdade de expressão tanto no uso das redes sociais como no contato com a imprensa.”
A Funai e a servidora Adriana foram procuradas pela Pública no início da tarde desta segunda-feira (25) por meio da assessoria de comunicação do órgão indigenista.
Na terça-feira (26), a Funai respondeu, em nota, que “os cargos em comissão e as funções de confiança são de livre nomeação e exoneração por parte do gestor, e devem atender às exigências do Decreto nº 9.727, de 15 de março de 2019, que regulamenta critérios, perfil profissional e procedimentos gerais a serem observados para a ocupação dos cargos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) e as Funções Comissionadas do Poder Executivo (FCPE)”.
A nota da Funai nada falou sobre a planilha questionada pela Pública. O órgão escreveu ainda que “o cargo de Coordenador Regional é um cargo de Direção e Assessoramento Superior de nível 3, no qual, segundo o Decreto nº 9.727/2019, o indicado deve possuir idoneidade moral e reputação ilibada; perfil profissional compatível com o cargo, não enquadramento nas hipóteses de inelegibilidade, bem como um dos requisitos do artigo 3º e 4º da referida norma”.
“Observado o disposto no Decreto nº 9.727/2019, a escolha final do postulante é ato discricionário da autoridade responsável pela nomeação ou pela designação, que tem como fundamentos a experiência profissional, a qualificação técnica e a confiança, amparado no princípio da Supremacia do Interesse Público. Por fim, no que tange à exoneração de ocupantes de cargo em comissão, a Funai esclarece que a decisão é livre de motivação, pois os motivos são as razões de fato e de direito que justificam a prática do ato administrativo, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF).”
A Funai não encaminhou um posicionamento da servidora Adriana Marques. Localizada por aplicativo de telefone pela Pública, a servidora recomendou que se buscasse informações com o gabinete do presidente da Funai. Sobre as postagens em suas redes sociais, incluindo a comparação de Bruno e Dom com “Débi & Lóide”, Adriana escreveu: “Não tenho nada a dizer com relação a isso! Procure a Presidência da Funai, eles poderão te auxiliar nesse assunto!”.